28 de setembro de 2011

O Julgamento

Após a sentença a última coisa que se ouviria seria o som do martelo e então tudo estaria acabado. O acusado em sua cadeira era o centro das atenções. O jurado eram olhos e bocas, enquanto aqueles estavam fixos no acusado, essas murmuravam entre si. O juiz era invisível, mas podia-se ouvir perfeitamente sua voz grave que fazia abalar as estruturas de qualquer acusado e até dos jurados. A promotora de (in)justiça era a única perfeitamente visível. Vestida a caráter para a ocasião, afinal o acusado não era qualquer um. Com um vestido longo e todo preto profundamente decotado, um, sobretudo aveludado, maquiagem escura e um salto alto finíssimo, andava de um lado para outro, fazendo soar o barulho do salto no piso a cada passo.
Ele, o acusado, observa atentamente, cada passo seu, acompanha com os olhos arregalados cada movimento da mulher. Até se esquece dos olhos e bocas que o conjuram, nem ouve a voz grave e estarrecedora do juiz. A voz daquela criatura ainda esta em sua mente continuamente. As acusações são tão absurdas que ele não consegue parar de ouvi-las. Os quarenta minutos que antecederam aquele momento foram os mais longos da sua vida. Cada palavra, cada gesto, cada olhar, havia deixado nele impressões devastadoras. Não conseguia pensar em nada, visualizar nada. Tão atordoado estava.
Todas as acusações eram falsas, ou quando não, inacreditavelmente absurdas, não podia ser. As provas mostravam que ele não havia cometido nenhum daqueles crimes. Durante anos fizera tudo o que esperavam, cuidara de cada detalhe e era fiel em seus compromissos, mas agora estava lá, sendo julgado pelo que não fizera. Deveria ter feito, não deveria ter sido quem era, era bom demais para estar vivo.
Já havia pensado antes em se matar e deixar um testamento pedindo para ser cremado e que suas cinzas fossem depositadas em uma caixinha que pudesse ser levada pra qualquer lugar. Assim, ela poderia sempre tê-lo por perto, sempre saber onde ele estava e monitorar todos os seus movimentos, se é que ele pudesse se mover nessa forma. Estaria ainda sempre à disposição dela, nunca olharia pra ninguém e seria totalmente dela, e não mais passaria pelos vexames e humilhações pelas quais passara até então.
Mas agora era tarde demais, estava em julgamento e sair dali pra resolver de outra forma era impossível. Os minutos se passavam vagarosamente, cada palavra parecia ser dita em câmara lenta. A voz do juiz soa surdamente em seus ouvidos enquanto ele com os olhos estatelados olha fixamente para a mulher que está à sua frente. Ela espera ansiosamente a decisão judicial, caminhando sempre de um lado para outro, às vezes olha para o acusado com um olhar fulminante, este não consegue desviar os olhos dela. Era o que conseguia fazer pra se manter de . Os olhos e bocas juramenteiros estavam ainda na mesma ação, como se quisessem arrancar da sua alma alguma confissão algo que confirmasse as acusações, o murmúrio continuava, ponderando se as acusações eram ou não verdadeiras, ou pelo menos cabíveis a ele.
Era acusado de muitas coisas, entre elas traição, fornicação, pedofilia, tendência a divórcio, etc. Adultério até onde sabia não era crime, não cabia então ser julgado e condenado por isso, fornicação também não era considerado crime, pedofilia sim, mas era impossível condená-lo por isso, ela sabia disso, mais que ninguém, sabia que ele não havia cometido tal torpeza, e a última era inacreditável. Tendência a divórcio? É claro que ele teria! Quem não tem? As reivindicações eram mais absurdas ainda. Seria absolvido de todas as acusações se abandonasse a idéia de se divorciar. Não acreditava nessa condição, pois sabia que isso não mudaria nada. O suplício continuaria. Para ele era a única forma de se resolver as coisas, além da morte, é claro, assim as brigas, acusações discussões, agressões desrespeito etc. acabariam, pois não estariam mais tão próximos.
O som do martelo do juiz interrompe os pensamentos, os olhos arregalados agora se desprendem da criatura de salto alto e se voltam na direção da voz grave e estarrecedora. Os olhos do jurado, ainda fixos nele, como que esperando qualquer reação comprometedora. As bocas se calam. O juiz começa um pronunciamento de poucas palavras.
Acusado ponha-se de ! Ele relutante se levanta. O que se ouve a seguir é a sentença final do juiz:
O Sr damu alamini está sendo acusado...
Não ouve mais a voz do Juiz, sabia cada palavra que se seguiria. Os pensamentos divagam sobre muitas coisas, passa em sua mente como que um filme dos últimos cinco anos de sua vida. Cada detalhe é nítido, como se fosse um flashback dos melhores piores momentos. As cenas passam aceleradas. O casamento, os filhos, as brincadeiras, a casa, o quintal, a bicicleta, a vida, as lágrimas, os risos, as brigas e bofetões. Tudo está sendo projetado em sua mente em poucos segundos.
O martelo do juiz soa novamente. Ele se assusta. Olha ao redor, não ninguém. Está na sala de estar da casa, totalmente vazia. Levanta-se da cadeira onde estivera. Olha no relógio, estivera sentado por cinco minutos. Pega a bolsa com as roupas, lança o último olhar pela casa, despede-se e sai, prometendo devolver a bolsa no dia seguinte.
...
Está se divorciando.

Péricles

A Travessia

           Enquanto a canoa desliza sobre a água, os pensamentos vagueiam. 
           Entre a terra e o Rio, não existe nada, são unidos, como a unha à carne, se misturam às vezes, ora um está por cima, ora está por baixo, num jogo sensual de acasalamento, numa constante alucinação erótica.
  A canoa leva o homem, este pensa. Pensa que pensa em alguém, mas pensa em si mesmo. Pensa como será do outro lado, ou talvez não chegue , fique no meio, siga o curso apenas, flutue e deixe que a correnteza o leve pra algum lugar. Mas não, ele precisa de um porto.
 O barulho que se ouve é apenas o do remo na água, dos pássaros aquáticos, dos sapos no brejo e ao longe um motor que ronca. Ali , o canoeiro mergulha e não volta. Imerso em seus pensamentos imagina como seria estar no fundo. Ver todos os seres que povoam o Rio, não enxergaria nada em baixo. A água turva por causa da terra, suja pela constante erosão das ribanceiras, é impossível ver algo.
em baixo a vida continua. A água vira barro. O barro é água e terra juntas ao mesmo tempo, uma liga. Nesse momento é uma carne, unidas pela penetração, pela umidade, deslizando, escorregadio, sentido em cada poro, em cada grão, em cada gota, tudo são sensações. A água e a terra são um assim. Impossível separar.
Por cima ela desliza num movimento constante, dentro o homem sussurrando algo, pensando não pensa, lembra apenas, sente seus movimentos, direciona, guia, controla.
Uma brisa sopra, as sensações causam arrepios, um frio na espinha, o Sol se foi, tudo está vermelho e turvo, quase não se nada, apenas sentem-se, vultos á margem, movimentos, sussurros. Um peixe pula, bate o remo, desliza suave para dentro, empurra. Os movimentos contínuos dão seqüência. Agora são um, um corpo, carne, sangue, água, terra, é barro. A voz e o vento também sussurram nos ouvidos, propagam os sons, provocam suspiros. Bolhas sobem na água, a terra respira, suspira.
Rompe-se o silêncio, o barco a motor passa a toda velocidade, as ondas balançam, os movimentos ficam mais bruscos, vão e voltam rápido, sussurros, gritos, pássaros voam, vento no rosto, mais força, movimentos mais rápidos, empurra, tira, mergulha, empurra, onda forte, desliza mais rápido está quase lá.
Fica ainda mais escuro. Tudo o que se tem são sensações, sente-se tudo, até o cheiro. Na escuridão a mão desliza até sentir, está morninha, muito bom. Ela ainda flutua, num balanço ritmado, seguem o curso, descem despreocupadamente, têm todo o tempo da vida. Falando nisso quanta água passou por baixo da ponte, nem se pensa sobre isso, ela continua estática parada, não sente o rio, não flutua sobre ele. A travessia é melhor assim, sentindo, tendo todas as sensações, ficando molhado, totalmente umedecida.
Lá no fundo um tumulto, um vai e vem constante, cada um para um lado, os sentidos estão aflorados, não sei se conseguem ver alguma coisa, mas sabem exatamente o que querem. A sobrevivência, a continuidade da vida, e a manutenção da espécie.
A natureza é assim, é natural que seja, a vida brota, flui, acontece sempre, continuamente. Pássaros cantam, capivaras assoviam, jacarés roncam, sapos gritam, peixes pulam.
       O
 homem em cima, ela desliza. A água e a terra são um, barro, areia, enfim a margem. É outra ou seria a mesma? Nunca se sabe quem é quem. Mas agora sabemos, é um.
A água, a terra, o homem, a canoa, o pássaro, o jacaré, a capivara, os peixes, os pernilongos, os caranguejos, as árvores, o vento, o céu estrelado, a lua e o Sol, a escuridão, o som, o sussurro, o gemido, uma carne, afinal, a travessia os uniu para sempre.

Péricles