28 de setembro de 2011

A Travessia

           Enquanto a canoa desliza sobre a água, os pensamentos vagueiam. 
           Entre a terra e o Rio, não existe nada, são unidos, como a unha à carne, se misturam às vezes, ora um está por cima, ora está por baixo, num jogo sensual de acasalamento, numa constante alucinação erótica.
  A canoa leva o homem, este pensa. Pensa que pensa em alguém, mas pensa em si mesmo. Pensa como será do outro lado, ou talvez não chegue , fique no meio, siga o curso apenas, flutue e deixe que a correnteza o leve pra algum lugar. Mas não, ele precisa de um porto.
 O barulho que se ouve é apenas o do remo na água, dos pássaros aquáticos, dos sapos no brejo e ao longe um motor que ronca. Ali , o canoeiro mergulha e não volta. Imerso em seus pensamentos imagina como seria estar no fundo. Ver todos os seres que povoam o Rio, não enxergaria nada em baixo. A água turva por causa da terra, suja pela constante erosão das ribanceiras, é impossível ver algo.
em baixo a vida continua. A água vira barro. O barro é água e terra juntas ao mesmo tempo, uma liga. Nesse momento é uma carne, unidas pela penetração, pela umidade, deslizando, escorregadio, sentido em cada poro, em cada grão, em cada gota, tudo são sensações. A água e a terra são um assim. Impossível separar.
Por cima ela desliza num movimento constante, dentro o homem sussurrando algo, pensando não pensa, lembra apenas, sente seus movimentos, direciona, guia, controla.
Uma brisa sopra, as sensações causam arrepios, um frio na espinha, o Sol se foi, tudo está vermelho e turvo, quase não se nada, apenas sentem-se, vultos á margem, movimentos, sussurros. Um peixe pula, bate o remo, desliza suave para dentro, empurra. Os movimentos contínuos dão seqüência. Agora são um, um corpo, carne, sangue, água, terra, é barro. A voz e o vento também sussurram nos ouvidos, propagam os sons, provocam suspiros. Bolhas sobem na água, a terra respira, suspira.
Rompe-se o silêncio, o barco a motor passa a toda velocidade, as ondas balançam, os movimentos ficam mais bruscos, vão e voltam rápido, sussurros, gritos, pássaros voam, vento no rosto, mais força, movimentos mais rápidos, empurra, tira, mergulha, empurra, onda forte, desliza mais rápido está quase lá.
Fica ainda mais escuro. Tudo o que se tem são sensações, sente-se tudo, até o cheiro. Na escuridão a mão desliza até sentir, está morninha, muito bom. Ela ainda flutua, num balanço ritmado, seguem o curso, descem despreocupadamente, têm todo o tempo da vida. Falando nisso quanta água passou por baixo da ponte, nem se pensa sobre isso, ela continua estática parada, não sente o rio, não flutua sobre ele. A travessia é melhor assim, sentindo, tendo todas as sensações, ficando molhado, totalmente umedecida.
Lá no fundo um tumulto, um vai e vem constante, cada um para um lado, os sentidos estão aflorados, não sei se conseguem ver alguma coisa, mas sabem exatamente o que querem. A sobrevivência, a continuidade da vida, e a manutenção da espécie.
A natureza é assim, é natural que seja, a vida brota, flui, acontece sempre, continuamente. Pássaros cantam, capivaras assoviam, jacarés roncam, sapos gritam, peixes pulam.
       O
 homem em cima, ela desliza. A água e a terra são um, barro, areia, enfim a margem. É outra ou seria a mesma? Nunca se sabe quem é quem. Mas agora sabemos, é um.
A água, a terra, o homem, a canoa, o pássaro, o jacaré, a capivara, os peixes, os pernilongos, os caranguejos, as árvores, o vento, o céu estrelado, a lua e o Sol, a escuridão, o som, o sussurro, o gemido, uma carne, afinal, a travessia os uniu para sempre.

Péricles

 

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