Em
Noite de Lua Cheia...
Parece que não, mas a Lua hoje está
mais brilhante, mais brilhante em todos os sentidos, está
completa, reflete com toda a sua belezura o Sol. A chuva do início
da Primavera dissipara a fumaça que camuflava seu brilho, e o ar
parecia se deliciar com a brisa e o cheiro de flores... Uma ou outra nuvenzinha passa, mas
logo é enxotada pela dona da Noite, que esbraveja a qualquer que
tente ofuscar seu sombrio brilho.
Em noites de ira ela se fecha para o
mundo e brilha de costas para o universo, mas hoje não, ela está
mais radiante que moça do sertão em tempos de festa Junina...
Diz a lenda que é em noite de Lua
Cheia que homens se transformam em lobos, mulheres em mula sem
cabeça... É um mistério brilhante as estórias que rondam as
noites mais claras...
Mas há de ser que nesses tempos
pós-modernos essas coisas não mais acontecem, ou, se acontecem são
disfarçadas em “evolução” ou em estórias científicas
petrificadas, mortas, desprovidas da magia que é a vida...
Outro dia ouvi, que em períodos de
lua cheia as mulheres ficam mais histéricas, os homens mais vorazes,
“sexualmente falando”, falam de sensações estranhas, desejos
incontroláveis visões inexplicáveis...
Ele, caminha por entre as árvores de
um pequeno bosque próximo ao centro da cidade. Seus pensamentos até
agora vaguearam sobre as questões e curiosidades em torno da
maravilhosa lua que brilhava no céu já quase a marcar o ponto
extremo acima das árvores...
As árvores do bosque permitem que
raios da luz lunática alcancem o solo, lá refletem a grama molhada
da chuva que caíra na tarde, aqui e ali uma pequena poça de água
no chão ameaça encharcar o tênis que usa, anda com cuidado pelo
caminho feito para passeios e caminhadas. Ao final do bosque um muro
baixo marca o início de um pequeno cemitério que já não é mais
usado, porém habitado por mortos e pequenos repteis há centenas de
anos.
A trilha não chega ao muro, mas de
cá pode-se ver o cume das pequenas cruzes e formas variadas das
catacumbas já deterioradas pelo tempo...
Na pequena fatia de bosque que
separa o caminho do muro ele ouve ruídos, é a parte mais densa da
vegetação, a luz quase não chega à grama a não ser em raras
frestas deixadas pelas copas das árvores mais altas. Não se
preocupa, e pondera que pode ser algum pequeno animal que habita o
bosque, a procura de alimentos.
No meio do caminho, em uma clareira
maior a luz da lua permite uma visão perfeita da areia molhada, uma
poça de água se forma bem ao centro pelo uso constante dos
caminhantes, junto à poça ele observa uma pegada, parecida com um pé humano, porém mais alargado, e logo à frente outra, parecida
com patas de cachorro porém muito maior do que comumente se via. De súbito um arrepio lhe
passou pelo corpo. Nas pegadas escorria água vindo da poça, o que
indicava que era recente, porém não havia ninguém na pista, pelo
menos ele não vira nada.
Enquanto observa, um pouco
encurvado para ver direito por causa da pouca visibilidade, atrás
dele ouve um ruido muito próximo saindo da pequena faixa de mato e
uma respiração ofegante, como de um cão farejando, e ao mesmo
tempo aparentando uma pessoa cansada de uma longa corrida.
As sensações se alternam entre
medo, desespero e vibração. As estórias de assombração ouvidas
na infância que lhe faziam perder o sono durante as madrugadas
passavam todas pela sua mente. Se levanta com um movimento leve, como
quem não quer assustar a fera, ou como quem quer um tempinho para
disparar em uma carreira alucinada pelo medo.
Nesse momento percebe que qualquer
tentativa de movimento seria inútil, sente-se paralisado, não
consegue reagir...
Ouve nitidamente os passos atrás de
si, mais e mais próximos, e passa adiante, um vulto, uma pessoa,
seguido por um grande cão, provavelmente seu único amigo. Leva um
enorme saco nas costas, nele carrega tudo que encontra que possa de
alguma forma ser útil. A roupa rasgada, suja e demasiadamente
grande, está encharcada pela chuva e constantes gotas que caiam das
árvores, em uma das mãos uma sacola com algumas latinhas, logo
para, abaixa-se e pega uma lata de cerveja jogada à beira do caminho. Balança,
escorre todo o liquido, põe-na em pé no chão e de súbito a amaça
com um dos pés. Sem calçados os pés enlamaçados e achatados,
talvez nunca usara um sapato. Observa mais a frente, embrenha-se no
mato, faz barulhos, galhos quebram arbustos balançam, logo volta com
mais uma latinha na mão e repete o ritual de amassamento.
Continua seu caminho, seguido pelo
enorme cão que acompanha cada movimento, cheirando tudo que encontra, como quem procura algo para comer...
Paralisado vê o desajeitado vulto
sumir na próxima curva do caminho. Não conseguiu se quer dizer “boa
noite”, não foi capaz de oferecer ajuda. Deu meia volta e caminhou
até o carro estacionado na rua próximo dali.
No caminho até seu apartamento uma
horrível sensação toma conta da sua alma. A certeza de que seria
inútil sentir pena sem se importar realmente. Covardia deixar ir sem
ao menos tentar ajudar. Hipocrisia dizer que é responsabilidade do
Estado, e não fazer sua parte...
A noite, embora linda se tornara em
uma longa reflexão sobre a vida, a existência humana e as relações
pessoais...
Quando se viu estava de volta ao bosque, caminhando,
agora à procura da estranha figura de horas atrás, a lua já se
declinara para Oeste, as sombras invadiam o caminho outrora
iluminado. Quando ao longe vê o vulto, se aproxima ansioso por
oferecer uma noite de descanso àquela alma sofredora. Percebe que
está onde antes ele observara as pegadas junto à poça, a ansiedade não o deixa
observar, quando se dá conta o que vê são dois vultos, nitidamente
enormes 'cães', um deles usando as roupas rasgadas que antes vira na pessoa, ambos sentados à
beira da poça, olhando-o fitamente. Olhos brilhantes, dentes
expostos, gestos ameaçadores. O saco estava à beira do mato.
Novamente fica paralisado...
...
Às seis da manhã vozes passos,
sussurros. Abre os olhos vagarosamente, a copa as árvores o deixam
confuso, tudo parece estar girando, as pessoas em volta chamam, mexem, comentam o que poderia ter
acontecido. Se levanta atordoado, as pessoas se dispersam uma a uma,
um ou outro pergunta o que havia acontecido, prefere dizer que não
sabe.
Caminha novamente até o carro, suas roupas estão sujas,
reluta em sentar, pois irá sujar o banco. Arruma o espelho interno e
observa sua aparência. Arranhões no rosto, sente algo estranho na
boca, confere os dentes, tem quatro presas nitidamente maiores e
afiadas, se assusta. Observa a camisa rasgada à altura do peito,
desabotoa e vê marcas de uma mordida. Trêmulo dirige até seu
apartamento. Toma banho e adormece.
...
Segunda feira, às sete da manhã o
escritório já cheio de clientes, cabeça dói, mas a semana está
só começando... Sai para tomar um café na padaria, enquanto toma
seu café alguém põe a mão em seu ombro, quando se vira a xícara
cai, boquiaberto observa à sua frente o mesmo vulto da noite
anterior, respiração ofegante, à porta o cão sentado observando,
se recompõe, senta-se em uma mesa com o estranho 'amigo', tomam café
juntos enquanto conversam sobre política e economia...